Prof Dr Marcelo Augusto de Felippes

O ano era 49 a.C e o general romano Júlio César decidiu atravessar o rio Rubicão, infringindo a lei do Senado que proibia que um general de Roma entrasse na Itália pelo Norte. Naquele momento, a sorte foi lançada e foi o início do estabelecimento do Império Romano.

Atualmente, “atravessar o Rubicão” é uma expressão que pode ser entendida de duas maneiras: a primeira é de extrapolar os limites. A segunda, quebrar regras, ou tomar decisões drásticas e irreversíveis.

Vários momentos da história são exemplos de decisões do “Atravessar o Rubicão”: Revolução Industrial, Revolução Francesa, Abolição da Escravatura Segunda Guerra Mundial, Internet, ataque às Torres Gêmeas, entre outros. Para os transportes, o Coronavírus é um Rubicão, que extrapolou limites e levou a decisões jamais vistas no mundo livre contemporâneo.

Muitos países ainda sofrem com a falta de acesso a vacinas e remédios. O influenzaH1N1 não pode ser subestimado, pois nós, humanos, temos uma tendência nata a não acreditar que a história pode se repetir. O melhor exemplo do passado para o momento é a Gripe Espanhola, que o vírus cujo reservatório eram aves migratórias, teria infectado uma criação de porcos no Kansas, EUA, vitimando um soldado de Fort Riley.   Mas o H1N1 de 1918 era muito peculiar e não é o mesmo que o COVID-19. As pessoas tinham hemorragias internas e sangravam pelo nariz, ouvidos e olhos. Caíam de cama pela manhã e à tarde estavam mortas.

Sem dúvida, a Gripe Espanhola é a “mãe das pandemias” dos tempos modernos.  Apesar do nome, a Gripe Espanhola não surgiu na Espanha, mas como durante a Primeira Guerra aquele país ibérico era neutro e possuía uma imprensa livre, os relatos divulgados para o mundo vinham de lá. Assim que a pandemia chegava a um novo país, era logo chamada de “a espanhola”, e o Brasil é um exemplo disso.

Chegou ao Brasil, em setembro de 1918, quando os tripulantes de dois navios brasileiros haviam sido infectados na Europa e na África. A partir daí, a gripe se espalhou rapidamente, vitimando milhares de brasileiros no intervalo de poucos meses. 

Um navio, seja de cruzeiro, militar ou cargueiro, por exemplo, é um condutor de muitas bactérias e cargas de vírus. Mas todos os meios de transportes o são também. Um ônibus, elevador, metrô, barca, ou trem urbano lotados na hora de pico são os ambientes mais propícios para transmissões desses inimigos invisíveis. 

Para as autoridades, instituições e empresas de transportes atuais, torna-se importante e impositivo saber um pouco da história da Gripe Espanhola.  Foram 3 ondas, entre março de 1918 e maio de 1919, ou seja, pouco mais de uma ao ano.

A primeira onda (de março a agosto de 1918) e havia casos confirmados somente nos EUA e na Europa.

A segunda onda (de agosto de 1918 a fevereiro de 1919) se alastrou pela Índia, Sudeste Asiático, Japão, China, África, América Central e do Sul, sendo os transportes o grande condutor dos vírus. Em todos os países, provocou um elevadíssimo número de mortos, mas o Brasil teve a maior perda entre os latinos.

A terceira onda (de fevereiro a maio de 1919) foi a mais letal.

Ao todo, estima-se que a Gripe Espanhola vitimou entre 50 e 100 milhões de pessoas ao redor do mundo, número muito superior às 8 milhões de vítimas decorrentes da Primeira Guerra Mundial, e que 500 milhões de pessoas tenham sido infectadas. 

No Brasil, foram cerca de 35 mil mortes, inclusive o presidente eleito Rodrigues Alves (1848-1919). Os mortos, em muitos casos, eram deixados nas portas das casas para que carroças levassem para sepulturas rasas. Essas carroças transportavam corpos e depois pessoas, aumentando a contaminação da população. O pânico tomou conta por completo.

Mas a verdade é que o vírus responsável pela Gripe Espanhola só foi conhecido na década de 1930, e a primeira vacina contra essa gripe foi fabricada somente em 1944.

No Brasil, ainda não existiam hospitais públicos e foi por causa desse surto que o governo federal à época começou a montar uma rede de saúde pública, mais tarde evoluindo para o Sistema Único de Saúde (SUS), modelo exemplar e muito bem-sucedido na história mundial.

Contudo, a propagação de um vírus foi e ainda é rápida e desenfreada por todo o globo, sendo os transportes um dos principais cernes dessa indesejável transmissão e ampliação da contaminação. 

Mas é também, sem dúvida, onde a tática e a execução das campanhas de cuidados com a higiene, distanciamento social e a quarentena compulsória possam ser melhor executadas pelos órgãos governamentais e pela iniciativa privada. 

Tecnicamente, recomenda-se a criação temporária de um centro de controle (CC) interagindo eficaz e permanentemente com as demais unidades da federação.  O CC pode criar protocolos que ajudem a minimizar a proliferação impiedosa do vírus e efetivas ações bem específicas e direcionadas ao enfrentamento da epidemia. As autoridades públicas em todas as partes estão em um esforço inédito e  tomando medidas decisivas para responder à ameaça emergente à saúde, levando a comunidade empresarial a reconsiderar a adequação de suas medidas de preparação para pandemia. O CC deve, principalmente, supervisionar e mitigar o risco nos transportes em todas áreas.

Para as possíveis próximas ondas e a desmobilização no retorno paulatino à vida normal da sociedade, torna-se mandatório o desenvolvimento de estratégias, incluindo alternativas de contingências, tendo a CT&I (Ciência, Tecnologia e Inovação) a responsabilidade na implementação de linhas de ação que garantam a inovação e resiliência operacional.

A principal prioridade é a garantia da segurança a todas as pessoas envolvidas e usuários no que tange à saúde, bem-estar e produtividade.

Os transportes são elos importantes para a continuidade das operações comerciais e áreas-chave dos negócios, que estão sendo fortemente impactadas, ainda sem perspectiva de melhoras no curto prazo.

Em suma, planejar agora, pensando no hoje e no amanhã. 

Todos os terminais de transportes, sejam portos, aeroportos, estações de trem / metrô, passagem de fronteiras ou divisas, rodoviárias constituem o “gargalo” e é por onde medidas preventivas e seletivas devam ser aplicadas. Canais específicos para idosos, bem como vagões de trens / metrôs, ônibus exclusivos e áreas separadas dentro de barcos, navios e outros espaços comunitários. Diferentemente da Gripe Espanhola que atingiu mais os jovens, o COVID-19 atinge àqueles com menos imunidade, tais como os bebês em formação e idosos com suas imunidades enfraquecidas pelo tempo.

Embora estejamos recebendo orientações para não usar máscaras, nos meios de transportes elas são recomendáveis, mesmo aquelas artesanais caseiras. Durante um deslocamento ou permanência em terminais, as roupas dos transeuntes podem permanecer impregnadas por algumas horas, bem todo metal que se tocar. Cuidados específicos são necessários.

Na verdade, tudo é muito novo e não há certezas científicas em todas as recomendações, contudo os “infectologistas de sofás” estão vorazes e emitem orientações que nem sempre são verídicas, sem contar com as mensagens falsas das mídias sociais. 

Fórmulas antigas são úteis, porém a tecnologia cibernética, inteligência artificial, internet das coisas, entre outras, que estão assustadoramente silenciosas, vivem o momento ideal de serem abundantemente empregadas e mostrarem o quanto podem real e verdadeiramente ajudar a humanidade. Atualmente, o Brasil tem contingenciado alguns bilhões de reais (mais de 1 bilhão de dólares) na reserva do Fundo Nacional para o Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT), que podem ser um fundamental impulso à CT&T nacional. Ainda há muito que enfrentar pela frente.

Agregando protocolos operacionais aos meios e terminais de transportes, combinando tempos e espaços, muito se pode criar e inovar em processos e protocolos no combate ao COVID-19. 

Todos os terminais, nos check in, canais de chegadas e partidas, devem ter túneis plásticos com medidores de temperaturas aparelhados com leitura digital. Sim, partida e chegada. A parte seletiva separa os possíveis casos para uma triagem mais detalhada. As Forças Armadas (mar – terra – ar) devem ser o principal instrumento nessa tática de combate ao COVID-19. Os usuários devem chegar mais cedo e sabem que serão liberados mais tarde que o usual, porém será necessário para o retorno à normalidade, pois do contrário os transportes poderão catalisar novas ondas do vírus. 

Mas o que já aprendemos e colocamos em prática? 

Além de lavar as mãos e inventar coisas para fazer quando confinados, muitas lições estão sendo aprendidas.

O Brasil possui um sistema de saúde chamado SUS (Sistema Único de Saúde) de escala continental, com quase 30 anos de experiência nacional, o que o tornou muito melhor preparados para executar as medidas de emergência, em relação a todos os outros países, incluindo EUA, Itália, França, Espanha, etc,  que saíram do zero e viveram enormes dificuldades para atender às demandas da situação em tempo oportuno, a sociedade brasileira não deu a devida importância no início, que, em muitos casos, continuou com a sua rotina de trabalho e  lazer sem ter a devida precaução. O Brasil ocupa o 79º lugar entre 189 países e territórios no ranking de Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), e as deficiências da educação herdadas pelo atual governo e falta de consciência coletiva e respeito ao próximo são inegáveis óbices ao desenvolvimento.

Está muito claro que no Brasil os governos federal, estaduais e municipais estão fazendo o melhor que podem. Não há registro na história brasileira de tamanha eficiência e responsabilidade com a saúde da população, apesar das notórias dificuldades, sobretudo no jogo Canhão X Manteiga, que hoje se caracteriza por Saúde X Economia.

No mundo, muitos países tiveram que enfrentar o isolamento de cidades, com restrições de transporte e de circulação, afetando aproximadamente bilhões de pessoas; houve a imposição para o fechamento temporário de fábricas, empresas e escolas; quase todos os locais públicos vivenciaram restrições drásticas para deter a propagação de COVID-19; várias cidades, incluindo as mais populosas, impuseram quarentenas; alguns hospitais passaram a ser dedicados ao tratamento de pacientes com Coronavírus; e a economia entrou em uma turbulência descontrolada.

Os transportes foram prejudicados profundamente, levando a redução de utilização de grande parte de frotas de qualquer meio. Todavia, a movimentação de carga e de alguns tipos de passageiros não podem parar. A falência de empresas não interessa a ninguém: nem a governos, nem a usuários e nem a empresários. O setor aéreo brasileiro adotou 3 medidas: o diferimento (não obrigatoriedade de pagar em dia) de tarifas de navegação aérea e a prorrogação por até um ano para as empresas aéreas devolverem dinheiro de passagens canceladas. No caso das concessionárias de aeroportos, elas vão poder diferir o pagamento das outorgas. Os outros modais também precisam de ajuda e serem atendidos, mas é compreensível e requer paciência, porque os recursos públicos e privados são limitados… e as necessidades são inúmeras, enormes e pesadas.

 “Atravessando o Rubicão dos Transportes”, entende-se que a partir dessa primeira onda do doloroso evento COVID-19, os meios de transportes que conduzem pessoas, desde um único taxi até um transatlântico, algumas rotinas devem ser implementadas, como higienização permanente e disponível ao usuário, bem como um acompanhamento mais de perto da higidez física e psicológica de todos os colaboradores que integram a função de transporte.

Entretanto, efetivas campanhas educativas devem emergir e serem divulgadas ininterruptamente, considerando que as próximas epidemias serão ainda mais fortes. As campanhas em vídeos dentro de ônibus, trem, metrô, embarcações, aviões, etc, devem, compulsoriamente, ser obrigatórias, contínuas e persistente. As escolas devem incluir em seus currículos temas referentes aos transportes públicos e comportamentos esperados em respectivos meios, modais e terminais (portos, aeroportos, estações, plataformas, etc), bem como as suas instalações públicas (banheiros, restaurantes, lojas, etc). Sem educação, não há evolução social. No final o que é fato: cada um é o primeiro e principal responsável em cuidar de si próprio e seus próximos.

A história se encarregou de chamar de Gripe Espanhola e a Espanha nunca rejeitou esse nome. Agora, chamam de vírus chinês… briga inútil de nomes e sem qualquer condimento para solucionar o grave risco pelo qual a humanidade passa. Chamem como quiser, mas combatam esse audaz inimigo invisível, que vai ter mutações e retornará cada vez mais fulminante, impetuoso e mortífero. Infelizmente, o despreparo notório de alguns meios de comunicação em todo mundo se agarra em picuinhas, pois foi isso que aprenderam a fazer e agora seu nível de conhecimento e maturidade não conseguem alcançar a verdadeira amplitude do problema e se limitam ao pobre sensacionalismo ou às asquerosas disputas politiqueiras. 

Este artigo está sendo escrito ainda durante a primeira onda do COVID-19 no Brasil, em março de 2020. A desmobilização e o retorno à vida normal da população, bem como o possível enfrentamento de ondas subsequentes, demandam, desde já, planejamentos e planos de logística e transporte para os governos e empresas encarregadas de garantir a vida da sociedade. O transporte é o sangue que corre nas artérias de uma cidade, um país, um continente… do planeta, e precisa de mais atenção e dedicação de planejamentos e planos, supervisionadas por um único centro de controle, em total sinergia e coordenação com a sociedade, meios de comunicação, células de combate à pandemia, autoridades federais, estaduais e municipais, e atividades produtivas de bens e serviços. Júlio Cesar atravessou o Rubicão e foi determinado. Conquistou Roma. Nós, habitantes do século XXI, estamos atravessando o nosso Rubicão e, se não tivermos a real consciência e vontade de mudar o status quo, conquistaremos um império de desprazeres, derrotas e perdas.

Prof. El Dr. Marcelo Felippes es director de la Cámara Interamericana de Transportes – CIT y “senior fellow” de la Global Federation of Competetiviness Councils – GFCC – EE. UU. (Siga su BLog), dedicó casi 40 años a la logística militar y 2 décadas a la enseñanza del transporte y logística en Brasil, EE.UU., América Latina, Europa y otros países, además de las principales operaciones de logística militar en el Amazonas y el transporte en los Juegos Militares Mundiales – JMM, en 2011, que le valió el título de LOGÍSTICA DEL AÑO. Escribió numerosos artículos técnicos publicados en Brasil y en el exterior y 12 libros sobre logística y transporte. En este artículo, advierte sobre lo que aún podemos enfrentar en el futuro cercano.